Vocações

Todos diziam que a Leninha, quando crescesse, ia ser médica. Passava horas brincando de médico com as bonecas. Só que, ao contrário de outras crianças, quando largou as bonecas não perdeu a mania. A primeira vez que tocou no rosto do namorado foi para ver se estava com febre. Só na segunda é que foi carinho. Ia porque ia ser médica. Só tinha uma coisa. Não podia ver sangue.

— Mas, Leninha, como é que…

— Deixa que eu me arranjo.

Não é que ela tivesse nojo de sangue. Desmaiava. Não podia ver carne malpassada. Ou ketchup. Um arranhãozinho era o bastante para derrubá-la. Se o arranhão fosse em outra pessoa ela corria para socorrê-la — era o instinto médico —, mas botava o curativo com o rosto virado.

— Acertei? Acertei?

— Acertou o joelho. Só que é na outra perna!

Mas fez o vestibular para a medicina, passou e preparou-se para começar o curso.

— E as aulas de anatomia, Leninha? Os cadáveres?

— Deixa que eu me arranjo.

Fez um trato com a Olga, colega desde o secundário. Quando abrissem um cadáver, fecharia os olhos. A Olga descreveria tudo para ela.

— Agora estão tirando o fígado. Tem uma cor meio…

— Por favor. Sem detalhes.

Conseguiu fazer todo o curso de medicina sem ver uma gota de sangue. Houve momentos em que precisou explicar os olhos fechados.

— É concentração, professor.

Mas se formou. Hoje é médica, de sucesso. Não na cirurgia, claro. Se bem que chegou a pensar em convidar a Olga para fazerem uma dupla cirúrgica, ela operando com o rosto virado e a Olga dando as coordenadas.

— Mais para a esquerda… Aí. Agora corta!

Está feliz. Inclusive se casou, pois encontrou uma alma gêmea. Foi num aeroporto. No bar onde foi tomar um cafezinho enquanto esperava a chamada para o embarque puxou conversa com um homem que parecia muito nervoso.

— Algum problema? — perguntou, pronta para medicá-lo.

— Não — tentou sorrir o homem. — É o avião…

— Você tem medo de voar?

— Pavor. Sempre tive.

— Então por que voa?

— Na minha profissão, é preciso.

— Qual é a sua profissão?

— Piloto.

Casaram-se uma semana depois.

 (Luis Fernando Verissimo)


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